“A cabeça é do Orixá e os pés são da Jurema. Não há cabeça que ande sem os pés”.
“É que há perguntas que não podem ser dirigidas às pessoas, mas à vida.
Porque a vida não acaba do lado dos vivos.
Vai para além, para o lado dos falecidos. Procura desse outro lado da vida, senhor”.
[Mia Couto, Fala do Feiticeiro Andorinho
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A Jurema é simples. A Jurema é complexa. Jurema é exorcismo e atende principalmente às demandas cotidianas: doenças físicas, amores e à míngua de sorte. Cada casa, cada juremeiro tem um trato com o rito e com a jurema-bebida. Participamos da Jurema de chão, no Templo Espírita de Umbanda Acácio Valério em João Pessoa. A magia já começa com a nossa ponte: Indra Lumiar. Pelo nome composto, pode-se imaginar: Deus hindu da tempestade com “aquela que é cheia de luz“. Indra Lumiar é ekedi* de sua mãe Nanda Lima Ty YeYê Okê, que é Iyá Jibonan* e médium de entidades da Jurema. Ambas foram iniciadas no Candomblé e pertencem ao Ilê Asé Ofá Lorikin (Recife-Pe), dirigida por Doné Bruna Ty Logunedé. Dado que este Ilê não cultua a Jurema Sagrada, Indra e Nanda a cultuam no Templo Espírita de Umbanda Acácio Valério.
O que parece intrincado nesta relação que mistura jurema, orixás e casas diversas se torna direto e natural. Ao serem questionadas sobre tal sincretismo, Indra responde: “A cabeça é do Orixá e os pés são da Jurema. Não há cabeça que ande sem os pés”. Sob um outro ponto de vista, justifica Doné Bruna Ty Logunedé: não há pés que andem sem a cabeça”. Em seu desembaraço, a cosmologia da Jurema se configura na imagem do corpo. Ela é conciliadora e se fortalece sem excluir ou julgar as outras crenças.
[…] é pela subjetividade (levada a seu paroxismo) que se alcança a objetividade.”
[Michel Leiris, A África Fantasma]
Antes de tudo, vamos descrever o Templo Espirita de Umbanda Acácio Valério. Na entrada da casa murada, ao lado direito da porta tem um pé de jurema branca. Esta árvore tem mais ou menos 50 anos. É frondosa e tem uns saquinhos com coisas dentro, presos nos galhos que só a Ialorixá Graça de Oyá Igbalé, dirigente da casa, pode explicar e cujos segredos não revela. Parecem patuás-souvenirs de Salvador, talvez bolsas de preces de nativos norte-americanos, ou mesmo os papéis coloridos com pedidos que os xintoístas japoneses prendem nos bambus durante o Tanabata Matsuri*. Os filhos da casa quando entram, reverenciam a Jurema-árvore encostando a testa em seu tronco. No hall, sobre a mesa lateral tem conjunto de cinco copos com água de tamanhos variados. São as cidades da jurema*. Ao lado das cidades, pousa um assentamento da Cigana Esmeralda: Um leque espanhol e bijuterias envolvidos por um lenço.
O excesso de símbolos nos intrigam. Deslocam o nosso olhar a todo momento. Uma tesoura de pontas abertas em cruz sobre uma tigela de água no canto, peles e ossos de animais sobre as vigas das portas protegem a sala principal. À primeira vista isto nos causa estranhamento, mas ao observarmos bem, tal inquietação não se refere ao que está sobre ou na porta, mas a porta em si. A porta nos remete à ideia de passagem, da iminência do acesso à um outro mundo.
Na sala principal de aproximadamente 50m2, banquinhos estão colocados em volta de um vaso de porcelana com ervas. Ali sentam-se os filhos da casa após acenderem uma vela. A Ialorixá Graça é a última a sentar. Ela fala pouco, nāo demonstra alegria ou tristeza. Senta-se por último, pois sua preocupação é fazer a sopa para o final do rito. Um tanto quanto parecido com o Oráculo de Matrix que parecia se preocupar mais com os cookies no forno do que com o futuro de Neo, o herói do filme. Seu banquinho é ao lado da porta da sala de assentamento* das outras entidades da Jurema, de onde os filhos da casa entram e saem com frequência, a buscar objetos e bebidas das entidades.
O culto da Jurema é reconhecido principalmente pelo presença dos Mestres. Mestres são alguns médiuns e os Mestres também são espíritos. Sobretudo, Mestres são os curandeiros. A propósito, Mário de Andrade, em Música de Feitiçaria no Brasil faz menção ao uso da palavra mestre: no século XVII, os portugueses chamavam de mestres aos médicos sem licença para a tal prática.
Parênteses: conversando com as entidades
Durante o rito, o Mestre José de Santana vem conversar comigo. Ironiza o Iphone que eu carrego para gravar. Ele faz considerações ao fato de eu ser “escrevinhadora”. Me chama carinhosamente de “Nêga”. Dá uma baforada profunda em seu cachimbo, pede as minhas māos, as defuma e fecha. Defuma meu corpo inteiro. Divide a bebida-jurema comigo. A bebida é servida em uma cuia, tem um gosto de vinho com especiarias e aquece o corpo no momento em que desce garganta abaixo. É um calor morno, sutil que expande na altura do peito. Enquanto isto, seguem-se chegadas e idas de entidades. Uma dos objetivos da jurema de chão é doutrinar os espíritos e os médiuns. Durante as incorporações, algumas destas pessoas se tornam especialmente belas, outras nos mostram as nossas facetas mais abjetas: estão embriagados, são marginais e incontinentes como a Cigana Esmeralda que balança a sua saia e diz profeticamente que eu conhecerei meu “único e verdadeiro” amor. Resisto em perguntar quantas vezes mais isto aconteceria na minha vida. E rio sozinha entre a desconfiança e o desejo de que aquilo se torne verdade.
[Suzy Okamoto]
Na cosmologia da Jurema, assim como nos versos do Ifá* há um desenrolar de estórias passionais, de conflitos e misericórdia. Qualquer semelhança com nossas vidas comuns não é mera coincidência. É notável como na Jurema de chão tudo faz sentido. A música nos hipnotiza. A justaposição de ervas, troncos, velas, ladainhas, cigana, cachaças, boiadeiros, mestres, encantados e as multifacetas das culturas negra, ameríndia e européia se revelam resistentes e sobrevivem. Diante dos mistérios e na impossibilidade de uma compreensão racional, começamos a desconfiar que Ítalo Calvino estava certo em fabular. Talvez a nossa existência não passe de um castelo dos destinos cruzados.
Por fim, existe um lado doce em tudo isto. A amabilidade das pessoas do Templo Espírita Acácio Valério nos deixa à vontade. A sopa quentinha, servida ao fim do rito, tem o gosto forte de carne e cominho. Um ambiente familiar vem à tona. Em tempo, nāo é preciso pagar nada pra estar lá. É tudo caridade. Fazemos uma contribuiçāo, mas nada que pague a possibilidade de olhar para o mundo com lirismo e sair mais leve.