Desarmar as armadilhas do senso comum, a principal delas: a visão idílica e romantizada dos indígenas, foi o nosso maior desafio.
“Afirmar que os índios estão ‘próximos à natureza’ é uma forma de contra-senso […]
para estar próximo a natureza é preciso que a natureza exista…” (Philippe Descola)
O encontro com os índios tabajaras foi um ponto de inflexão na trajetória da pesquisa. A primeira interlocução na Aldeia Barra do Gramame foi com a D. Maria José, mãe de Cacique Carlos Tabajara. Sob a oca, ela pegava os remédios de “brancos” junto aos médicos da Funai. Um verdadeiro balde de água fria em nossa busca pelo gérmen do culto religioso que envolve medicina vernacular. Desarmar as armadilhas do senso comum, a principal delas: a visão idílica e romantizada dos indígenas, foi o nosso maior desafio.
A despeito de D. Maria José fazer uso dos medicamentos da medicina convencional, ela conhece bem as plantas e o uso delas. Apontando para as ervas da aldeia diz: Tudo é remédio. Hortelã da folha grande… Fazemos lambedor* do cajueiro roxo, lambedor de cupim … Tudo a gente faz remédio. Folha da mangueira… cana da índia para dor nos rins… chá de raiz de vassourinha…”. D. Maria José atribui à Deus os seus conhecimentos. Em um claro argumento cristão, ela diz: “Eu não acredito que ninguém venha ao mundo que não seja ao Pai e o Filho. Mas complementa: E aqui, entre os índios da gente tem o Deus Tupã… quando estamos entre os antepassados, na hora do toré*, a reza é Pai Nosso com o Deus Tupã“.
Ao indagá-la sobre a Jurema, D. Maria José simplesmente nos responde: “aqui não tem jurema, não… jurema tem em Alhandra. Mas tem muitas músicas…”. E canta: “Tabajara é guerreiro, Tabajara no seu Juremá…”. O conteúdo desta cantiga nos traz o fio da meada que conduz à Jurema Sagrada. Na tradição do Catimbó, Juremá é reino dos cultos primitivos às forças da natureza. Suas forças não acossam (não são incorporadas), elas são invocadas. Este Reino é governado por Tupã, a mesma divindade suprema da mitologia dos indígenas de língua tupi. Todavia, para os Tabajaras – senhores do rosto da terra* – a Mãe-Terra é a figura mítica dominante e a pajelança é em torno e dentro dela.
Relato Cacique Carlinhos Tabajara
Olhe, a gente trabalha de maneira sutil e tem hora pra isso. Nós vamos pra dentro de uma mata de acordo com a natureza, a nossa Mãe Terra. Nós vamos para dentro do cabelo dela porque ali chegam diversos antepassados nossos para observar e nós chegamos para conversar com eles. Então, ali fazemos os nossos pedidos. Ali, chegam no pensamento da gente, o que a gente quer enxergar. Uma dúvida que a gente tem. Chega uma música que a gente não sabia. Nós fazemos os pedidos de segurança para o nosso povo e para nossas lideranças. Para tudo temos hora. É dessa forma que a gente respeita nossa mãe natureza: Amando os cabelos dela. A gente acha protegido dentro do cabelo da Mãe Terra porque ali é nossa casa. Nós não queremos isto: esta devastação mexendo nos cabelos, principalmente onde o cabelo está mais bonito. […] Olhe, a nossa Mãe-terra é a nossa mãe. E mãe se zela, não é pra negócio. Não é pra se vender não é pra se trocar. Quem quer dar fim à sua mãe? […] Nós somos contra a venda das terras dentro das sesmarias do nosso território. […] Nós fazemos nossos rituais nós agradecemos por tudo que a natureza nos dá. Nós agradecemos o peixe que a gente pesca no Rio Gramame, no Rio Graú, que é em Tambaba, no Rio Abaí, no Rio Bucatú. […] Tudo nós agradecemos pelo que Deus dá a gente. Todas as nossas músicas são pedidos: nossas músicas da Jurema, nossas músicas das matas, nossas músicas dos nossos antepassados… São momentos de alegria no toré e também são pedidos. Como a gente tem a cautela e a sutileza de fazer estes trabalhos temos a coerência de tirar o remédio ou tirar um pau da mata pra fazer uma escora ou uma oca. Nós temos que pedir licença a nossa mãe-terra e ao nosso pai Tupã. [..] Nós éramos um povo que acreditávamos no fogo, na lua e no sol. O fogo é fogo o sol é Guaraci e a lua é Jaci. Mas era um povo que tinha fé. […] Hoje nós somos um povo indígena aculturado. Aculturado quer dizer o que? Quer dizer que nós temos outras culturas de outros povos mas nós não esquecemos da nossa. Nós temos a própria cultura-mãe.
O traço messiânico é presente nesta fala. No entanto, a solicitude revelada no timbre grave da voz nos desconcerta. Nos desconcerta porque o que pensávamos ser a “origem” da Jurema Sagrada não é. Jurema é só um dos fios desta madeixa. Para além do foco da nossa pesquisa, Cacique Carlos nos apresenta o próprio emaranhado dos cabelos da Mãe-Terra: a secular questão territorial permeada pela violência, o desaparecimento dos tabajaras, o reconhecimento étnico recente, as questões ambientais que atravessam e são atravessadas pela evangelização e pela pajelança “aculturada” à qual ele se refere como sendo a sua base de estudos e na qual os tabajaras são capazes de modificar seu (nosso) destino.
Nós temos nossas pajelanças. […] Nós temos muitas simpatias. […] Nós temos simpatia de proteção. Temos a simpatia de fazer fogo. Temos nosso toré da chuva. […] Nós temos essas inteligências. […] Nós sabemos como é que a gente espanta uma pessoa sem dizer nada e ele. […] As simpatias mais fortes e as palavras de nossa reza para afugentar a dor, a gente não pode ensinar. É um segredo. Sabe quem tiver experiência e quem nasceu pra aquilo.
Cacique Carlos nos conta sobre a presença dos espíritos dos antepassados nos torés. Diz ser possível escutá-los e até vê-los. Simone Tabajara, sua esposa, tem um relato semelhante – “quando estamos reunidos dançando… a energia… a música… quando a gente canta, os espíritos do antepassados chegam na hora. Igual a eu fazer um cocar: tem um espírito ajudando, me dando força. Tudo que eu aprendi a fazer, eu vi em um sonho – nos lembrando da afirmação do líder yanomami Davi Kopenawa – “quem não é olhado pelos xapiripë (espíritos) não sonha, só dorme como um machado no chão*.” – anunciando a triste sina de nos tornarmos uma ferramenta potente, mas inerte e sem vida.
Para os tabajaras, dançar, fazer pedidos, afastar maus-espíritos, cantar, Deus, Tupã estão no mesmo plano de imanência: trabalhar pode ser um modo de ser tocado pelo espírito, sonhar é um modo de aprender. Mas tudo isto depende da integridade da Mãe-Terra. Não se trata exclusivamente da questão territorial. É o que o antropólogo Kaj Århem chama de ecosofia: um sistema integral de idéias, valores e prática […] um conhecimento ecológico convertido em crença. Para os índios, se não houver mata não há espíritos ou inteligência. A exuberância das matas é diretamente proporcional a possibilidade da existência em plenitude.
As cidades encantadas da Jurema Sagrada são elementos desta mata a serem preservados. Angico, Manacá, Junça, Catucá, Aroeira, Jurema e Tambaba não são meras metáforas ou símbolos. Existe uma realidade biológica neste sistema a ser estudada. Se cada cidade possui seu reinado, suas entidades, seus encantados, quantos mais espíritos errantes (e vidas concretas) poderiam encontrar refúgio nesta natureza se assim ela permanecesse?