Bailando uma cantiga que trouxe o vento frio do outono foi que eu a vi chegando, a curandeira.
O Noroeste Paulista é uma terra distante, conhecida antigamente como “A Princesinha do Sertão”. Foi das últimas áreas a ser colonizada pelos bandeirantes devido à distância com a capital. Levou anos para que os avanços tecnológicos chegassem à região; por fim, estradas e rodovias abriram espaço no sertão paulista. Avançando sobre a terra vermelha banhada do sol escaldante, típico em todos os meses do ano, a modernidade fincou raízes. As mulheres e homens dessas terras aceitaram, resignadamente, o que lhes reservava o futuro.
Nessas linhas, a busca e o registo sobre os tempos antigos do sertão, passa inteiramente sobre a investigação da vivência de mulheres que viveram seus dias sob o chão quente e rubro dessa região.
Aquelas que ilustram os relatos dos ofícios ultrajados são chamadas por muitos nomes: curandeiras, rezadeiras, benzedeiras, erveiras, parteiras, abençoadeiras. O que todas têm em comum é uma força imensa que se apoia nos mistérios do universo. A manipulação da natureza através da agricultura e da fabricação de remédios, o domínio das práticas do nascimento, o tratar com naturalidade da morte, a crença na espiritualidade e o dom da intuição assustaram tanto aos racionalistas da Idade Média, que foi preciso séculos de Inquisição para calar aquelas que desenvolviam seus saberes herdados de geração em geração.
Na Era moderna, os avanços tecnológicos, especialmente na área da saúde, fizeram com que essas práticas fossem alçadas ao nível de mito. Houve intenso trabalho de diversos setores da sociedade a fim de desmoralizar e ultrajar a sabedoria milenar das mulheres do passado. Apesar da campanha contrária, os saberes femininos não morreram totalmente; passando por muitas modificações, eles seguem vivos, ainda que de maneira difusa.
Em nome da valorização da cultura feminina e com o objetivo de catalogar os nomes e as experiências daquelas que traçaram seus caminhos no Noroeste Paulista, essas narrativas buscam ecoar a voz das personagens silenciadas pela História.
Há cerca de cem anos atrás, a curandeiria era a principal fonte de tratamento de boa parte da população. Não havia hospitais modernos e exames investigativos, menos ainda se você morasse no interior do país, em lugares afastados das capitais; restavam poucas opções, senão tratar os doentes com infusões, chás e seguir as tradições de quem trabalhava com a cura sem nenhuma formação acadêmica – a primeira faculdade de medicina do Brasil foi criada em 1832.
As mulheres foram grandes responsáveis pelas práticas de saúde, cuidados com o corpo e primeiros socorros, mantendo viva a medicina popular das antigas gerações. Nos dias de hoje, as práticas do passado servem como fonte de pesquisa para os que se interessam pela cura natural e terapias complementares; estes tratamentos, chamados de alternativos, estão intimamente associados à natureza pois à ela recorrem para extrair as propriedades de bálsamos, unguentos, xaropes, elixires, caldos e outras formas de remédios caseiros.
Dona Santa, avó da minha amiga, me conta sobre Dona Lídia, senhora que era curandeira em Palmeira d’Oeste, falecida há muitos anos. Segundo ela, Dona Lídia fazia garrafadas, xaropes, pomadas, sabonetes e ensinava as receitas para serem feitas em casa; só cobrava o quanto pudessem lhe pagar. Santinha se lembra de uma vez, quando ela e a filha tiveram tiriça – o nome popular dado para hepatite C. A curandeira indicou banhos diários com picão e chá da mesma erva. Em alguns dias, ela e a filha se curaram da doença. Outra vez, Dona Lídia curou seu filho mais moço do mal da síflis. O remédio foi uma garrafada feita a base de vinho branco de laranja, raiz de salsaparrilha cortada em cruz, erva doce e sementes de laranja amassadas.
É difícil encontrar na região mulheres que se digam curandeiras. Elas já quase não existem, especialmente porque não se reconhecem mais com esse nome. Mas suas práticas de cura seguem vivas no dia-a-dia dos moradores do sertão paulista, seja na preparação de remédios caseiros ou nas receitas mais adversas, como a inalação com eucalipto, o repelente de citronela, os cataplasmas de babosa e os macerados de ervas.
Houve um tempo em que partejar era um trabalho bastante reconhecido. No passado, antes dos adventos da moderna obstetrícia, as parteiras eram mulheres respeitadas e reconhecidas. Afinal, ser parteira exige tempo e dedicação, não existem partos agendados e os bebês podem escolher nascer a qualquer hora do dia ou da noite. Debaixo de sol forte, ou sob chuva, a parteira não tem escolha quando lhe mandavam chamar – estes são os encargos de seu ofício.
Das profissões registradas nessas linhas, a de parteira é, sem dúvida, a que mais sofreu com o ultraje patrocinado pelo progresso cientificista. Talvez por isso estas mulheres tenham sido obrigadas a resistir firmemente para poderem prosseguir com suas práticas. Desta resistência brotaram frutos de esperança, e ainda é possível encontrarmos parteiras na região, Lucélia Caires, natural do interior Bahia e residente em São José do Rio Preto há 12 anos, se orgulha ao responder quando lhe perguntam sua profissão: “Sou parteira!”
Lucélia é parteira na tradição. Isso quer dizer que ela recebeu os ensinamentos de uma parteira tradicional. O encontro com esta prática aconteceu quando acompanhava um parto domiciliar (sua formação acadêmica é como enfermeira obstetra). Neste dia, ela conheceu os trabalhos de uma parteira de Bauru, formada através da madrinha Suely Carvalho, fundadora do CAIS do Parto, em Recife. Em seguida, viajou de São José do Rio Preto para Olinda para participar da primeira parte da formação do curso de parteiras na tradição; e, em 2015, terminou seus estudos, mudando de vez de profissão: deixou a enfermagem para trabalhar exclusivamente como parteira.
“Quando recomendo a uma gestante tratamento para infecção urinária, por exemplo, estou praticando a curandeiria. Muitas vezes, preciso benzer a casa onde vai acontecer o nascimento. Então também sou benzedeira.”
As artes do benzimento e da curanderia se misturam no trabalho de Lucélia, que fundou o Florescer da Vida, um centro de atendimento em São José do Rio Preto, onde várias profissionais desenvolvem práticas de cura, além de oficinas de artes e atendimento a gestação, parto e pós parto..
A benzedeira é uma pessoa fortemente apegada ao poder das palavras. São mulheres de diversas crenças e, por isso, observamos em suas atividades um intenso processo de sincretismo entre catolicismo e religiões de origem africana, além do xamanismo dos povos nativos. As benzedeiras acreditam que a cura pode ser atingida através da fé, por oração e vibrações; por isso, parte dos processos curativos envolvem os benzimentos, passes e rezas.
No campo da saúde, elas trabalham benzendo os que precisam recuperar a vitalidade. Alguns males específicos ficaram famosos pelo tratamento com benzimento; várias mulheres com as quais conversei relataram os cuidados das benzedeiras como primordiais na cura de alguns males populares; doenças como mal de simioto, que a medicina trata como desnutrição ou infecção por bactérias; espinhela caída, que é um mal que ataca com dores nas costas e no abdômen e acomete geralmente pessoas que trabalham nos serviços pesados; ou mesmo o quebranto, também chamado de mal olhado, que seria um “feitiço” posto por outra pessoa que lhe deseje o mal, ou inveje algo que você possui, segundo os relatos, esse mal pode levar a vários sintomas, desde desnutrição em crianças até depressão em adultos
O ofício das benzedeiras é distinto do das parteiras e das curandeiras, pois essas duas são requisitadas em momentos exclusivos do trato com a saúde. Já as benzedeiras, não; elas podem ter suas rezas solicitadas para os mais variados fins.
Converso com Dana Landa, benzedeira há 15 anos. Ela me conta que quando era moça, assistia a avó, Dona Maria, que era parteira e benzedeira na região entre Aparecida d’Oeste e Jales. Apesar de se lembrar das práticas de sua matriarca, Dona Landa relata ter “recebido o dom do benzimento”, por isso, sua reza é diferente da que fazia a avó. De segunda à sexta-feira, a partir das 17h, forma-se fila na frente de sua casa; são pessoas que esperam pela vez de serem atendidas.
“Tem dia que eu benzo até tarde da noite. Benzo gente, benzo roupas; as vezes me trazem sacos cheios de peças pra eu rezar, tem que fazer uma por uma.”
Dona Landa conta que não cobra pelo serviço, apenas aceita aquilo que cada um lhe quiser ofertar. Pergunto se ela usa algum ramo de planta pra benzer e ela conta que não, usa apenas as mãos:
“A força está na fé que eu ponho na reza, e na energia que passo com as mãos. É tanta gente pra benzer que se fosse ver, não teria galho de planta pra todo mundo!”
Entre os ofícios ultrajados, a figura da benzedeira parece ser a que melhor conseguiu se diluir no cotidiano das comunidades onde, ainda hoje, existem muitas desenvolvendo o ofício; seja nas cidades ou na zona rural, elas são procuradas para auxíliar em diversos propósitos, cumprindo assim, as funções espirituais que lhe foram incumbidas.
O respeito às tradições é o principal pilar no qual se sustentam as mulheres que praticam a medicina curativa, os benzimentos e o partejar. Há muita coisa em comum nas práticas dessas mulheres; além disso, é possível reconhecer nelas um profundo respeito às anciãs, que compreenderam os segredos e mistérios do passado e detiveram a sabedoria que seria transmitida de maneira oral às mulheres da família e aquelas próximas que possuíssem o “dom”, ou o “chamado” para os ofícios.
A curandeira, a parteira e a benzedeira são profissões que fazem parte da formação da identidade cultural da população do Noroeste Paulista; em suas práticas sincréticas de medicina popular, fé e crendices vemos a relação existente entre nosso interior com outras regiões interioranas do país, os muitos sertões existentes Brasil a fora.
Referências: